Introdução
A garantia do direito à saúde para pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e demais identidades (LGBT+) é tema central das políticas públicas brasileiras desde a instituição da Política Nacional de Saúde Integral LGBT (PNSILGBT) em 2011 (BRASIL, 2011). A PNSILGBT — Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais — visa garantir o acesso universal, integral e equânime da população LGBT+ ao Sistema Único de Saúde (SUS), combater a discriminação institucional, promover a formação e sensibilização de profissionais e ampliar o registro e a atenção às demandas específicas desta população, como hormonização, saúde mental e acolhimento de pessoas trans. Contudo, apesar dos avanços normativos, persistem desigualdades regionais que afetam o acesso a serviços de qualidade. Este artigo analisa a oferta de atendimentos voltados à população LGBT+ em Petrópolis, município serrano do estado do Rio de Janeiro, contextualizando-a com dados de prevalência nacional, comparação internacional e destaque para o estado com maior estruturação de serviços no país.
População LGBT+ no Brasil: prevalência e comparação global
O primeiro levantamento oficial sobre orientação sexual no Brasil, extraído da Pesquisa Nacional de Saúde 2019, estimou 2,9 milhões de adultos homossexuais ou bissexuais, correspondendo a 1,9 % da população maior de 18 anos (IBGE, 2022). Embora o dado permaneça subdimensionado, devido ao sub-registro e ao receio de autodeclaração, ele oferece referência inédita para o planejamento em saúde. No recorte etário de 16 a 24 anos, inquéritos domiciliares apontam proporções superiores a 9 %, indicando tendência de maior visibilidade entre gerações mais jovens. No plano internacional, a pesquisa LGBT+ Pride 2023 em 30 países encontrou média de 3 % de adultos que se identificam como gays ou lésbicas e 4 % como bissexuais (IPSOS, 2023). Assim, a prevalência brasileira oficialmente mensurada situa-se ligeiramente abaixo da média global, sugerindo subnotificação ou diferenças metodológicas.
Acessibilidade à saúde LGBT+ no Brasil e liderança paulista
A PNSILGBT estabelece diretrizes de acolhimento, formação profissional e enfrentamento da discriminação, mas sua implementação é heterogênea. Entre as 27 unidades federativas, o estado de São Paulo apresenta a rede de atenção mais consolidada. A Resolução SS nº 89/2024 determina a qualificação dos serviços do SUS-SP para redução de barreiras de acesso, criação de ambulatórios especializados e oferta de terapia hormonal autônoma às pessoas trans (SÃO PAULO, 2024). Além disso, o estado mantém Centros de Referência da Diversidade, delegacias especializadas e campanhas permanentes de prevenção a ISTs, caracterizando-o como referência nacional.
Metodologia
Este estudo utilizou pesquisa documental em portais institucionais e veículos de imprensa regional para levantar dados de atendimentos em Petrópolis entre 2022 e 2024. As informações foram confrontadas com normativas do Ministério da Saúde e estatísticas nacionais, permitindo análise descritiva sobre cobertura e lacunas.
Achados da pesquisa
Estrutura de serviços em Petrópolis
O município conta atualmente com dois eixos de atenção específicos:
1. Centro de Cidadania LGBTI Serrana II – inaugurado em 2021, oferece acompanhamento psicológico, social e jurídico gratuito. Entre janeiro de 2022 e março de 2023 o centro realizou 1.287 atendimentos a 825 usuários (DIÁRIO DE PETRÓPOLIS, 2023). Desses, 146 eram pessoas trans em processo de retificação de nome e gênero (TRIBUNA DE PETRÓPOLIS, 2022).
2. Ambulatório Municipal Especializado em Saúde LGBTQIA+ – instalado na Rua 7 de Abril, 374, integra equipe multiprofissional (clínica médica, enfermagem, psicologia, nutrição, psiquiatria) e protocolo de hormonioterapia implantado em novembro de 2021. Em junho de 2024 a prefeitura noticiou 1,6 mil atendimentos acumulados desde a criação do ambulatório (PREFEITURA DE PETRÓPOLIS, 2024).
Somados, os dois equipamentos contabilizam ao menos 2.887 procedimentos específicos em saúde e assistência para a população LGBT+ ao longo de pouco mais de três anos, revelando capacidade de acolhimento relevante para um município de 279 mil habitantes.
Perfil dos atendimentos
A maior parte dos acessos ao Centro de Cidadania refere-se a acolhimento psicológico de jovens LGB e apoio jurídico a pessoas trans em processos legais, enquanto o ambulatório concentra demanda clínica – consultas médicas, acompanhamento hormonal e psicoterapia breve. A inexistência de banco de dados unificado dificulta mensurar incidência de agravos específicos (por exemplo, infecções sexualmente transmissíveis), mas a soma de atendimentos permite inferir prevalência de busca por serviços voltados à afirmação de gênero e saúde mental, refletindo tendências descritas pela literatura nacional.
Discussão
Comparando-se a estimativa de 1,9 % de adultos LGBT+ no Brasil com a população adulta de Petrópolis (cerca de 210 mil pessoas), projetam-se aproximadamente 4.000 residentes LGBT+ na cidade. Os 2.887 atendimentos registrados equivalem a média de 0,96 atendimentos por pessoa no período, sugerindo cobertura significativa, mas ainda distante de garantir cuidado longitudinal. Vale lembrar que a prevalência local pode ser maior do que a estimada, pois estudos internacionais demonstram que contextos urbanos e turísticos costumam concentrar maior visibilidade e migração interna LGBT+.
O quadro petropolitano demonstra aderência parcial às diretrizes da PNSILGBT, sobretudo no que tange à criação de estrutura especializada e à integração com a rede de atenção primária. Contudo, há desafios: (1) sub-registro de identidades nos prontuários, dificultando planejamento epidemiológico; (2) necessidade de capacitação continuada dos profissionais; e (3) ausência de indicadores estaduais padronizados como os adotados por São Paulo. A experiência paulista evidencia que normativas específicas, investimento em formação e articulação intersetorial incrementam o acesso e reduzem barreiras institucionais.
Considerações finais
A análise evidencia que Petrópolis avançou na institucionalização de serviços voltados à população LGBT+, alcançando quase três mil atendimentos em três anos. Entretanto, a manutenção de políticas públicas requer consolidação de sistemas de informação, ampliação de ações educativas e adoção de metas quantitativas de cobertura, à semelhança do modelo paulista. Reforça-se a importância de pesquisas locais contínuas para aferir prevalência real, monitorar incidência de agravos e avaliar a efetividade dos serviços. Investir na formação humanizada de profissionais e fortalecer parcerias com movimentos sociais são estratégias imprescindíveis para assegurar atenção integral, equânime e de qualidade à população LGBT+ petropolitana.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011. Institui a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 dez. 2011.
DIÁRIO DE PETRÓPOLIS. Centro de Cidadania LGBT realiza quase 1.300 atendimentos. Petrópolis, 14 mar. 2023. Disponível em: https://diariodepetropolis.com.br/. Acesso em: 1 jul. 2025.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Em pesquisa inédita, 2,9 milhões de adultos se declararam homossexuais ou bissexuais em 2019. Brasília, 25 maio 2022.
IPSOS. LGBT+ Pride 2023 Global Survey Report. Paris: Ipsos, 2023.
PREFEITURA DE PETRÓPOLIS. Petrópolis celebra o orgulho LGBTQIA+ com mais de 1,6 mil atendimentos realizados em ambulatório especializado. Petrópolis, 14 jun. 2024.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Saúde. Resolução SS nº 89, de 25 de abril de 2024. Qualifica a rede estadual SUS-SP para atenção integral à saúde da população LGBT+. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 26 abr. 2024.
TRIBUNA DE PETRÓPOLIS. Dia do Orgulho LGBTQIAP+: confira onde encontrar atendimento especializado em Petrópolis. Petrópolis, 28 jun. 2022.